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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O VALOR DA BIODIVERSIDADE

Grãos cuspidos por mamífero em fazenda no ES renderão café de R$ 900 o quilo

Divulgação/CulturaMix
Cuíca, o "bicho de bom gosto"

LUIZA FECAROTTA
ENVIADA ESPECIAL A PEDRA AZUL (ES) - FOLHA DE S. PAULO

À primeira vista, não dava para entender por que diabos aqueles grãos de café, meio gosmentos, surgiam amontoados sob as árvores - religiosamente, da noite para o dia.

Ao amanhecer, era sempre igual: os roceiros se enfiavam no meio do cafezal para fazer a colheita manual e davam de cara com uns grãos, já sem casca, sobre as folhas secas no chão. Algum animal ali da mata andava a chupar esses frutinhos adocicados.

Depois de muito fuçar, Rogério Lemke, o administrador da fazenda Camocim, na qual se espalham 120 mil pés de café em Pedra Azul, a 100 quilômetros de Vitória, no Espírito Santo, matou a charada.

Eram cuícas, pequenos mamíferos silvestres, que guardam certa semelhança com um rato. Os bichos se penduram nos galhos mais baixos das árvores, à noite, para se alimentar da casca, da polpa e do mel do café. Escolhiam sempre os melhores frutos, como em uma "colheita seletiva".

Depois, as cuícas dispensavam os grãos, ainda com algum resquício do mel sobre o pergaminho (película entre a semente e a polpa). Para evitar prejuízo, com o desperdício de grãos, o carioca Henrique Sloper, dono da fazenda, resolveu recolher essas sementes "cuspidas".

A partir daí, como revela a Folha, Sloper decidiu fazer testes de secagem e torra para descobrir, na xícara, o que eles poderiam render.

Depois de um ano de avaliações, o café da cuíca deve ser lançado em novembro por pelo menos R$ 900, o quilo. Em média, um pacote de mesmo peso de um café especial custa R$ 60 - os grãos cuspidos pelo animal custarão, portanto, 14 vezes mais. Bicho sem carisma, a cuíca, quem diria, vale ouro.

Seu João Pagio Fiorezi, 61, fornece mudas de café há 25 anos para a fazenda Camocim, no Espírito Santo.


CAFÉ DE CUÍCA


Ilustrações/Sandro Castelli
Os pés de café ficam com os frutos maduros entre abril e setembro; começa a colheita


À noite, a cuíca escolhe as frutas mais maduras e chupa os grãos dos galhos mais baixos



Depois de chupar a fruta e engolir a casca, cospe as sementes em torno do pé de café



Esses grãos cuspidos são recolhidos manualmente todos os dias em meio à colheita habitual do cafezal


Os grãos são secos em terreiro suspenso de 5 a 12 dias, com umidade e temperatura controladas


Os grãos são estocados em tulhas com temperatura, umidade e luz controladas


A cada 15 dias, os grãos passam pelos testes de torra e prova 


 Depois de alcançar o ponto ideal de torra, são feitos testes de diferentes métodos de preparo da bebida


Definem-se o preço e a estratégia de lançamento no mercado


Seu João saltou do caminhão, adentrou o cafezal, aproximou-se de uma árvore em área mais reservada, ou seja, mais afastada de casas e estrada, e mais perto da mata. Agachou-se e abriu os galhos mais baixos para espiar.

"Esse é o café da cuíca", disse, pegando um punhado de grãos despolpados (sem casca nem polpa) nas mãos. Aquele café tinha cheiro forte, remetia à terra e ao universo animal - mas o odor não chegava a ser ruim. Os grãos estavam com uma gosma, ainda resquício do mel do café.


TÍMIDAS E CRITERIOSAS


Marcelo Justo/Folhapress
"Cuícas são incapazes de comer café verde ou estragado", diz especialista; colheita dos grãos cuspidos pelos animais é realizada manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão


E as cuícas? Não foram encontradas nem por decreto. Enfiam-se no meio da mata e ali ficam, escondidas.

São animais ariscos e noturnos, que gostam de comer somente os grãos adocicados, no ápice da maturidade.

"Elas têm um ótimo critério de seleção. São incapazes de comer café verde ou estragado", diz Evair de Melo, presidente da Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), que ajudou a desenvolver os cafés de jacu e cuíca na fazenda.

As cuícas surgem por ali aos montes porque a área é circundada de parques nacionais e mantém parte da mata nativa - à semelhança da cabruca, o sistema de plantio de cacau típico do sul da Bahia, que conserva a mata para sombrear os cacaueiros.

Na propriedade de produção orgânica, pipocam hortênsias arroxeadas, margaridas do mato amarelinhas, amarelinhas e pitangueiras carregadas de fruta.

A colheita desses grãos cuspidos pelas cuícas é trabalhosa, feita manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão acomodando-os em sacolas a tiracolo.

É fundamental que seja realizada regularmente para que os grãos não fermentem sobre o chão - é comum ficarem protegidas pelas folhas das árvores da mata ali conservada, que servem de adubo natural ao cafezal.

Os grãos colhidos são transportados para secar em um terreiro suspenso, protegido por estufa, com umidade e temperatura controladas. Depois, são separados de gravetos e afins manualmente e estocados na tulha para que descansem antes da torra.

Para chegar à xícara, passa por testes de perfis diferentes de torra, provas profissionais - quando o grão é moído grosso, entra em contato com a água quente e é sugado de forma a cair homogeneamente sobre a língua.


RAIO-X DA CUÍCA


Como é -> É um mamífero marsupial - como o canguru, as fêmeas são dotadas de uma bolsa chamada marsúpio, que contém as tetas e serve para carregar os filhotes

Onde vive É encontrado na região que vai do México à Argentina

Quanto mede -> Quando adulta, seu corpo pode alcançar cerca de 30 cm de comprimento

Que cor tem -> Seu dorso é cinza-escuro, e as partes inferiores, amarelo-clara e manchas da mesma cor acima dos olhos

O que come -> Animal onívoro que se alimenta de matéria vegetal e animal - metade da sua alimentação é de frutas.Tem entre 40 e 50 dentes


O JACU PIONEIRO


A cuíca não é, contudo, o primeiro animal a "participar" do processo de produção de cafés especiais no Brasil.

Quem emplacou de forma pioneira foi o jacu - ave robusta, com bico pronunciado e papo vermelho. Seu café foi vendido pela primeira vez em 2007, também pela fazenda Camocim. Atualmente, são produzidos 950 quilos por ano a R$ 450, o quilo.

Conhecido como "faisão brasileiro" e também semelhante a um urubu, esse animal era uma praga para a plantação de café.

"O jacu comia muito do meu café, dava o maior prejuízo", diz Henrique Sloper, dono da Camocim. "Muitos fazendeiros matavam o bicho, ficou quase extinto."

Inspirado no kopi luwac, o famoso café da Indonésia, cujos grãos são retirados das fezes da civeta (animal semelhante ao gambá) e que podem custar US$ 493, o quilo (cerca de R$ 1.000), o café de jacu surgiu para solucionar esse problema no cafezal.

"O que era uma praga virou fonte de um produto de alta qualidade", diz Sloper.

Tanto o jacu quanto a cuíca escolhem os frutos mais maduros e sem defeitos para se alimentar - por isso, geralmente, resultam em bebidas de doçura acentuada.


PREÇO


O fazendeiro vê nesses cafés exóticos uma grande fonte de lucro. Ao consumidor, resta a pergunta: vale mesmo pagar um valor tão alto?

Especialistas apontam pequenos problemas na primeira amostra, que podem ter sido gerados pela torra excessiva.

Sloper, por sua vez, diz que ainda fará ajustes nessa etapa para que possa extrair o melhor desses grãos, torná-los mais delicados e adequados para o preparo no coador, método que deixa suas características à mostra com mais clareza.

Espetacular na xícara ou apenas razoável, o café com a contribuição da cuíca conta uma boa história. Não tenha dúvida: isso também tem um custo.


QUANTO CUSTA O QUILO?


CUÍCA - R$ 900
Os grãos cuspidos pelo roedor são recolhidos manualmente do chão e secos em terreiro suspenso

JACU - R$ 450
Os frutos maduros comidos pela ave são liberados nas fezes, que não têm cheiro, e limpos manualmente

CAFÉ ESPECIAL - R$ 60
São cafés de qualidade superior à média, feitos só de grãos arábicas, com doçura e acidez equilibradas


SURGEM RESSALVAS À 1ª LEVA, PRODUTOR VAI MUDAR A TORRA


Marcelo Justo/Folhapress
Isabela Raposeiras não gostou da baixa acidez da 1ª amostra


Marcelo Justo/Folhapress
Marco Suplicy identificou uma nota vegetal, de mato


Marcelo Justo/Folhapress
Cecília Sanada acha que a "bebida não é acima da média"


Com a primeira amostra do café da cuíca, que não circulou comercialmente, a Folha convidou três experts para provar a bebida às cegas. Isabela Raposeiras, do Coffee Lab, Marco Suplicy, do Suplicy, e Cecília Sanada, do Octávio Café, aceitaram o desafio.

Fizeram provas informais com uma pequena quantidade de grãos. Ficaram de lado os protocolos rígidos de degustações profissionais - a ideia era somente colher primeiras impressões de especialistas.

Do balanço geral dessa primeira leva, surgiram três pontos de tangência: baixa acidez, doçura acentuada e torra um pouco exagerada.

Foram as mesmas conclusões a que o norte-americano Andrew Barnett e o holandês Willem Boot (ambos provadores profissionais) tinham chegado na última semana em prova acompanhada pela Folha na fazenda capixaba.


EXCESSO DE TORRA


Para Isabela Raposeiras o excesso de torra inibiu o potencial do café. "Esse café cru deve ser de qualidade, tem doçura elevada e é limpo. Mas a acidez é muito baixa [especialistas se referem à acidez como sinônimo de qualidade]."

Marco Suplicy achou a bebida "agradável", com "bom corpo" e "nota de mato". "Mas sinto uma aspereza, não é uma bebida nem mole, nem estritamente mole [as melhores categorias da bebida]."

Já Cecília Sanada diz que o café perde em aroma. "Não é acima da média." Por outro lado, chama a atenção para a doçura acentuada e para um "amargor que não chega a atrapalhar a bebida".

Segundo o fazendeiro Henrique Sloper, o lote que vai chegar ao mercado em novembro passará por ajustes de torra a fim de fique "mais delicado".