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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Pobre Coxilha Rica

Lorenzo Aldé (na esquerda) quando visitou a RPPN Rio das Lontras para o site O ECO.


Parece que as futuras gerações dificilmente vão saber o que é um revigorante e delicioso banho de cachoeira, seja pela poluição dos nossos rios, seja pelo simples desaparecimento delas pela construção de hidrelétricas onde quer que exista uma queda mais acentuada e um volume considerável d'água.
Até mesmo a bela cachoeira da RPPN Rio das Lontras está com um Projeto Base aprovado na ANEEL, assim como as três outras quedas após ela também.
Lorenzo Aldé é jornalista e nos visitou como Editor-Chefe do site ambiental O Eco. Hoje ele trabalha na
Revista de História da Biblioteca Nacional e escreveu uma bela matéria sobre o assunto:


Pobre Coxilha Rica

Caminho das tropas em Santa Catarina pode ser desfigurado pela construção de oito hidrelétricas.
Lorenzo Aldé

No caminho das tropas, avistam-se as águas. A construção de novas usinas de geração de energia ameaça alterar drasticamente a paisagem da Coxilha Rica, na serra catarinense. A região foi desbravada por tropeiros ainda no século XVIII, servindo de passagem para animais e mantimentos transportados entre a capitania de São Paulo e o Rio Grande do Sul. Aos poucos, alguns viajantes deixaram-se ficar no caminho. Foi um tropeiro o fundador de Lages, principal cidade do planalto serrano.

Quando chegou o século XX, abrindo novas rotas comerciais entre o Sul e o Sudeste, um estranho fenômeno ocorreu: na região das menores temperaturas do Brasil, o tempo congelou-se. Por uma extensão de mais de cem quilômetros, o que se observa na Coxilha Rica são sedes de fazendas centenárias e bem conservadas, ao longo das ruínas dos corredores de taipa, construídos para orientar os tropeiros e facilitar o ajuntamento dos animais. Na divisa com o Rio Grande do Sul, junto ao rio Pelotas, o Passo Santa Vitória, além de ponto de parada das tropas, abrigou um posto de alfândega na época em que as terras gaúchas pertenciam aos espanhóis. Batalhas da revolução Farroupilha também se passaram ali.

O problema é que, em tempos de PAC, os rios serranos viraram sinônimo de energia elétrica. Correndo em vales estreitos e em região pouco habitada, suas águas prometem reservatórios pequenos, muitos megawatts e pequenas indenizações, ou seja, uma geração barata e descomplicada. Mas nem sempre funciona assim. Antes de ser liberada, a usina de Barra Grande enfrentou uma batalha judicial por ignorar, em seu estudo de impacto, a riqueza da Mata Atlântica com araucárias que pretendia alagar. Para a região da Coxilha Rica, estão previstas oito hidrelétricas, sendo sete de pequeno porte (PCHs) e uma grande usina — Pai-querê, em fase de licenciamento. A controvérsia, agora, é não apenas ambiental, mas histórica e cultural.

“Pai-querê vai inundar totalmente o Passo Santa Vitória e as PCHs também vão interferir muito no patrimônio da região. Vão causar um choque muito grande nos ambientes natural e cultural, que se estão preservados até hoje é porque as fazendas guardam praticamente o mesmo modo de vida do século XIX. Estes cento e poucos quilômetros vão virar um canteiro de obras, surgirão vilas operárias, a população vai quadruplicar”, alerta Iáscara Varela, que desde 1995 coordena o grupo Cultura e Desenvolvimento — com especialistas de várias áreas dedicados a pesquisas para a preservação da região de Lages.

Nos últimos anos, em parceria com universidades, foram feitos um mapa georreferenciado dos corredores de taipa, entrevistas com moradores e estudos arquitetônico, arqueológico, ambiental e sócio-econômico da Coxilha Rica. A intenção é motivar o tombamento do patrimônio e estimular propostas para o desenvolvimento sustentável na região. “O testemunho histórico pode ser integrado ao valor turístico, o que já começa a acontecer”, defende o arquiteto e professor Luiz Eduardo Teixeira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Durante três semanas, ele percorreu com alunos cinco das cerca de trinta sedes de fazenda na Coxilha Rica. Identificaram uma herança ibérica nas construções, e costumes específicos dali, como os jardins de camélias.

Mas todo o trabalho talvez não seja suficiente para evitar a enxurrada de hidrelétricas. De olho nas indenizações, um grupo de fazendeiros criou o Instituto Coxilha Rica, com o objetivo de criar uma Área de Proteção Ambiental (APA) na região. Apesar de soar bem, trata-se da categoria menos rígida de preservação: pode-se liberar as usinas em troca de compensação. A prefeitura de Lages também “está encantada com a possibilidade de ganhar contrapartidas”, nas palavras de Iáscara Varela.

Resta torcer pela ação do Iphan. Em fevereiro de 2007, o presidente do instituto, Luiz Fernando Almeida, mostrou-se impressionado com a riqueza da Coxilha Rica, em sobrevôo de helicóptero pela região. “O Iphan é a única saída que temos. Nossa relação com eles é muito boa. Porém, como qualquer outro órgão público, é lento e essa lentidão pode por em risco a preservação do patrimônio”, diz Iascara.

De fato, apesar de existirem estudos desde 2001, apenas em novembro último foi aberta uma licitação para a criação de um dossiê para “tombamento emergencial” do caminho das tropas. “Temos trabalhado com informações desencontradas sobre o
assunto”, afirma Ulisses Munarim, superintendente regional do Iphan.

Nesse passo, o que era “emergencial” pode acabar mesmo debaixo d’água, junto com a memória do caminho das tropas na serra catarinense.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional