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domingo, 6 de julho de 2008

Caçador ganha mais para não matar mais onças


Antes tarde do que nunca. Mas sempre é muito triste e profundamente lamentável saber que um caçador já matou mais de 50 onças em pouco mais de uma década.
Mais perturbador ainda é saber que exitem dezenas de milhares de outros caçadores espalhados mundo afora matando impiedosamente animais que podem desaparecer da face da Terra, de baleias a focas, tigres, golfinhos...
E não precisamos ir longe, basta uma conversa com moradores da região onde moramos para sabermos de "causos" de caçadores de fim de semana, matando tatus, gambás, quatis, guaxinins, onça-parda, tucanos e o que estiver a frente.
É o ser humano no que há de mais primitivo, de mais ignorante, de mais insensível.
Mais do que extinguir belas formas de vida do planeta é, acima de tudo, o caminho mais curto para o desaparecimento de nossa própria espécie.
A reportagem abaixo não trata de um "caçador arrependido" que resolveu mudar de time e foi lutar pela conservação das onças. É só uma questão profissional, de dinheiro, de oportunidade. Nada mais que isso.

De caçador a ecologista

Como trabalha o caçador profissional que desistiu de matar onças para pecuaristas para ajudar pesquisadores a salvar os grandes felinos

Juliana Arini

A caçada começa cedo. Antes do amanhecer o grupo faz a primeira refeição do dia. Eles só vão comer novamente depois de capturar uma onça. O prato é sempre o mesmo: arroz com carne-seca. “Temos que ter comida forte. Às vezes andamos até o fim do dia sem pegar nada”, diz Carlos Roberto Platero, 61 anos, um dos últimos caçadores profissionais do país. Próximo à entrada da casa descansam cinco cães amarrados à trela, uma espécie de corrente que prende toda a matilha. Eles são todos onceiros, ou seja, foram treinados para farejar e perseguir grandes felinos. É o próprio Platero que os treina. O caçador sempre batiza os cães com os mesmos nomes: Maiado, Baleia, Corumbá e Faísca. “É para dar sorte e para homenagear os meus melhores farejadores que morreram”, diz. O objetivo da noite é capturar uma onça pintada. Uma tarefa para poucos.

“Não tem emoção maior na vida. Já 'desoncei' muita fazenda por aí”, diz Platero, que caça desde 1986. Na época, seus principais clientes eram pecuaristas cansados das perdas financeiras que as onças representam. Um felino adulto pode comer até 40 bezerros por ano. Em doze anos de caçadas, matou 53 onças, entre pintadas e pardas. Natural de Araçatuba, em São Paulo, foi no Mato Grosso do Sul que Platero se tornou um matador. “Na região tinham tantas, que ou a gente caçava, ou elas acabavam com o gado”, afirma. “Aprendi a caçar com meu pai. Ele era bom para pegar onça”. Além da profissão de caçador, Platero também herdou a fazenda São Manoel, onde mora e cria gado. “Os bois é de onde tiro o sustento. Pegar onças é só por diversão”.

Durantes as capturas, dois ajudantes acompanham Platero. São eles que carregam os equipamentos e abrem as trilhas. “Na hora em que o bicho está acuado, tenho que estar livre para conseguir atirar rápido”, afirma. O grupo decide começar a caçada. Eles levam os equipamentos para o carro e seguem para uma área próxima ao Parque do Ivinhema, no Mato Grosso do Sul. Uma unidade de conservação criada para compensar os danos ambientais do enchimento do lago da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, nos municípios de Taquarussu e Naviraí. A mesma região em que Platero fez as primeiras caçadas quando era jovem. Hoje, ele guarda apenas duas peles das mais de cinqüenta onças que matou. “Uma eu deixei porque é mais alta que um homem, a outra guardo porque tem pintas parecidas com as da jaguatirica”, diz. Quando o carro pára, os cães latem agitados. Platero desamarra a matilha da trela.

Os cães disparam em direção à floresta. Para segui-los, o grupo se embrenha em tufos de capim, entra na água e segue pela mata à dentro. São quase duas horas de caminhada. O latido dos onceiros é o indicativo do se estar, ou não, próximo de uma onça-pintada, o terceiro maior felino do mundo, que possui uma mordida mais forte do que a de tigres e leões. “O som muda quando eles encontram o bicho”, diz Platero. “Nessa hora a adrenalina é tanta que a gente até esquece que passou a madrugada andando no mato”. Os cães começam a uivar e o caçador desaparece em direção do barulho.



O caçador Carlos Roberto Platero (à frente) "equipado" para procurar a onça pintada

Assustada, a onça sobe em uma árvore. “Essa é o momento mais perigoso. Não dá para ver exatamente onde o bicho está, nem se ele vai pular”, afirma Platero. O animal mira o chão em busca de um caminho para fuga, mas a matilha não a deixa descer. Os uivos ficam mais fortes. É um sinal de que a onça está completamente cercada. “Nessa hora, a segurança é o tiro. É por isso que não acredito nessa história de zagaia”, afirma. O instrumento que o caçador desdenha é uma lança feita de madeira, muito usada no Pantanal para matar os felinos. Segundo as lendas da região, os caçadores enterram a zagaia no coração da onça no momento em que ela pula para o ataque. “Acho que é tudo mentira. Onça, só no tiro mesmo’, diz Platero. Ele derruba o animal da árvore com um tiro preciso. Uma rede é presa nos troncos para amortecer a queda. O animal abatido pelo tiro não foi morto e, sim, anestesiado”.

Prateiro não caça mais para pecuaristas. Hoje ele é contratado exclusivamente por pesquisadores. Ele ajuda os cientistas a capturar onças para programas de monitoramento. A conversão do caçador em ajudante de ambientalistas aconteceu em 1998, quando conheceu o biólogo da fundação Pró-Carnívoros, Denis Sana. Foi dessa amizade que surgiu um dos maiores ajudantes dos programas para conservação de onças do país. “No começo, ficava estranho não matar a onça. Mas depois a gente acostuma. Hoje acho até bom, porque sei que as elas estão desaparecendo das matas. Não dá para continuar a caçar como antes”, diz Platero. A onça é retirada da rede por um grupo de veterinários. Como todos os animais do monitoramento, ela carrega no pescoço um rádio-colar, um equipamento que permite o monitoramento à distância. Os veterinários também recolhem amostras de sangue e examinam o animal. Tudo tem que acontecer em menos de trinta minutos, antes que a onça acorde. “Já fizemos uma captura em que o bicho não dormia de jeito nenhum. Ela pulou várias vezes em cima da gente e chegou a matar dois cachorros”, diz Platero. “Depois, a gente percebeu que ela estava com um filhote, por isso ficou mais agitada”.

A onça é levada para de baixo da mesma árvore onde foi abatida. O animal desperta em menos de uma hora e o grupo se afasta. “A caçada acabou”, afirma Platero. Hoje, ele já contabiliza 61 onças capturadas para os programas de pesquisas. Um número superior ao de onças mortas para os pecuaristas. Ele recebe dos programas cerca de R$ 800 por captura. O dobro do que os pecuaristas pagavam para que os felinos fossem mortos. Platero usa o dinheiro para manter os cães caçadores. “Formar um bom onceiro-mestre custa caro. É por isso que fico triste quando uma onça mata um cachorro meu”, diz. “Para falar a verdade, o problema não é dinheiro. Caço porque gosto e, se aparecer caçada boa, vou até de graça”.


Fonte: Revista Época