Um livro sobre o cartunista, uma compilação e um inédito marcam seus 'inquietos' 75 anos
Patrícia Villalba, do Estadão
Patrícia Villalba, do Estadão
Foto: Fábio Motta/AE
RIO - Perto de completar 75 anos, no dia 24, Ziraldo Alves Pinto tem implicado com Simone de Beauvoir. Seus cabelos e até sobrancelhas são branquinhos e há algum tempo se tornaram uma marca, mas os macaquinhos andam serelepes como sempre pelo seu sótão, como se ele mesmo ainda fosse o menino maluquinho de Caratinga, Minas Gerais. Talvez fosse a companhia de um taciturno Jean-Paul Sartre, alfineta ele, que fez Simone achar que a pós-maturidade é o fim, a decadência – tese lançada pela escritora em A Velhice, de 1970. "As gerações de hoje estão demorando muito para entregar o ouro", observa ele.
Longe de se tornar rabugento, mas também nada a ver com um "velhinho fofo", Ziraldo se mantém vivaz, engraçado, ferino e saudavelmente indignado. Assim mesmo e a mil, fez ginástica para abrir espaço na corrida agenda das comemorações dos 75 anos – "a festa aconteceu o ano todo!", diverte-se – para receber o Estado, em seu estúdio na Lagoa, no Rio. Uma conversa sobre o que ele mais gosta de falar – tudo.
Com 75 anos ainda dá para ter macaquinhos no sótão?
Dá. Eu tenho pensado muito sobre a velhice. Reparo uma coisa: esse negócio de achar que a velhice é o fim, a entrega, a decadência é algo que me assustou muito no livro da Simone de Beauvoir (A Velhice). Como ela envelheceu mal, ao lado do Sartre, que também envelheceu mal, ela escreveu um livro que só levantou a história de artistas que envelheceram mal. Acho estranho, porque todo mundo tem a consciência de que vai ficar velho, e quando a velhice chega deveria ser natural. As gerações de hoje estão demorando muito para entregar o ouro. Neste momento, a quantidade de pessoas na minha faixa etária que ainda está atuando no Brasil é imensa. Inauguramos o setentão, que até pouco tempo não existia.
A gente percebe mesmo que os setentões estão saracoteando por aí. O que será que mudou nessa sua geração?
É uma pergunta interessante porque a geração do Sartre chegou muito amarga à velhice. Se você escolhe uma vida só baseada nos prazeres da carne, é claro que a pele vai ficar feia, que você ficar doente, cansado. O que está acontecendo agora é a consciência mais ampla de que não há alternativa: o melhor é continuar produzindo. Veja a Dercy Gonçalves, o Niemeyer, eles não se queixam da velhice. A Simone de Beauvoir disse que nenhuma obra dos grandes mestres foi feita na velhice. No entanto, o Niemeyer continua criando.
Mas você é preocupado com a saúde, se cuida?
Mais ou menos. Precisava nadar, andar, fazer regime. Não faço nada disso, só tomo as minhas pílulas para pressão alta. Por azar, eu tenho pressão alta. Atrapalha muito a vida de quem quer continuar fazendo muita coisa, mas tem como controlar, com as pílulas. Mudar o modo de viver, nem pensar. Comer sem sal? Eu, não.
Você sempre teve personagens homens, meninos, e agora vem com uma menina, a Menina das Estrelas. Como é hoje sua observação do universo feminino?
Meus personagens são mesmo meninos. Sempre tive muito cuidado ao escrever sobre meninas porque o meu trabalho é sobre a natureza humana, não sou um contador de história, estou sempre colocando questões sobre o sentimento humano. Achava meio difícil, porque eu poderia ser sincero mas não competente ao escrever sobre a menina, a mulher. Desta vez, tive coragem. Quando comecei a escrever o livro não tinha idéia do que dizer. Tanto é que não fiz uma história, mas uma descrição dessa instituição maravilhosa que é a menina. Há duas instituições no mundo: a menina e o menino. Larva, casulo e borboleta – você tem exatamente isso no ser humano. Até os 7 anos, o ser humano é larva. Dos 8 aos 11, é casulo. Depois, vira borboleta, vai assumir a própria vida. Agora, nesta fase de casulo, é que a menina e o menino passam a existir, quando se julgam no mundo. Sou fascinado por essa faixa de idade. Isso está bem explicado no livro, quando eu ilumino a menina dos 8 aos 11 como a Menina das Estrelas.
Sempre pensei no porquê de você não usar nos livros infantis nada da veia política que conhecemos dos seus trabalhos para adultos.
Acho que isso não é conversa para menino. Eu faço histórias otimistas para crianças. Não sou otimista, sei que a humanidade é complicada e que o ser humano nasce com ânsia de bondade, mas que a luta pela vida vai fazê-lo usar as piores qualidades dele para sobreviver. A vida vai mostrar esse tipo de coisas para criança, quando ela crescer. Mas enquanto for criança, eu tenho de falar de coisas amenas para ela. Eu não falo no Menina das Estrelas que o pai dela pode falhar, que a mãe dela é maluca, chata. Posso brincar com isso, mas valorizo a relação com o pai e com a mãe. Não vou fazer livro sobre aids para criança! Ela tem de acreditar na vida. Você não tem de fazer orientação política para criança, bobagem. Faço livros para a criança gostar de ler.
O Menino Maluquinho é de 1980, e coincide com abertura política. Não é coincidência que você tenha passado da indignação do Pasquim para o lirismo da literatura infantil justamente neste período, não?
Tem tudo a ver. Porque eu fiquei sem saber o que ia fazer. No Pasquim, eu tinha uma causa, vivia em função da luta contra a ditadura. Já tinha feito história em quadrinhos antes, sabia conversar com criança. Tinha feito Flicts, mas por causa do AI-5 me dei conta de que havia uma luta, e que eu não poderia ficar fazendo livro infantil. Quando os anos de chumbo acabaram, pensei "o que eu vou fazer?". Comecei a trabalhar como artista gráfico. Daí, me ocorreu fazer O Menino Maluquinho. O livro arrebentou a boca do balão, vendi 100 mil exemplares na Bienal do Livro de 1980. E editora me encomendou outro livro, e outro e mais outro. Virei autor para criança.
Então, é impossível a sobrevivência de uma publicação como O Pasquim na democracia?
Não tem como. Veja que todas as experiências fracassaram. Eu fiz a Bundas (1999), que era uma revista política. O leitor não teve nem curiosidade de verificar o que era. Quando a Carla Perez fez seguro da bunda dela, o banco anunciou em todos os lugares, menos na Bundas. Não conseguimos nenhum anúncio no mercado paulista. Ninguém anuncia num jornal de humor político. É engraçado, se fechou o espaço para publicação de humor no mundo. Eu gostaria de voltar a ter uma revista de humor, mas a única maneira de fazê-la sobreviver seria fazer sobre costumes. Porque fazendo cartum ridicularizando o Congresso e a decadência da política brasileira, não é possível sobreviver.
O Brasil sempre riu de si mesmo. Perdeu a auto-ironia?
Perdeu isso nas publicações. Mas a internet é cheia de sacanagens, o humor continua. Um humor de muito mau gosto, de burro, porque a internet é aberta, a qualidade do que se faz ali é péssima. E o humor que se faz na televisão é para agradar ao público menos exigente. O Zorra Total é de chorar. Agora, o humor de tomada de consciência, realmente, está morto no mundo inteiro. Tudo mudou, e eu não tenho nostalgia. Mas as razões para você ser feliz não são as mesmas de 30 atrás. Você pode ser feliz, sempre. As circunstâncias mudaram, só isso.
Mas você continua romântico?
Claro, a gente não vai mudar por causa dos novos tempos, mas precisa compreender os novos tempos para não ficar desajustado. É preciso ter consciência da transitoriedade das coisas, isso ajuda a envelhecer.
Você é mais Jeremias, O Bom ou mais Menino Maluquinho?
Acho que os dois. Não tem como você fugir de botar a sua cabeça nos personagens que cria, seja o Mineirinho, o Comequieto ou a Supermãe. Eu sou a Supermãe e tenho também o meu lado Jeremias, mas com a consciência de que a bondade não é uma qualidade, é uma maneira de sobreviver no mundo. Às vezes, é mais fácil ser bom, você se livra dos problemas.
E o seu disco de bolero, quando sai?
Olha, eu fiz a versão de Vingança, do Lupicínio Rodrigues para o espanhol, como bolero. Vou cantar no disco da Maria Eduarda, que canta como um anjo. O Chico Caruso canta uma música e eu outra. Em novembro, ela vai lançar o disco, e eu e o Chico vamos participar do show – somos dois caras-de-pau. Eu ainda gravo um disco de bolero. Nasci mesmo para ser crooner de orquestra!
Longe de se tornar rabugento, mas também nada a ver com um "velhinho fofo", Ziraldo se mantém vivaz, engraçado, ferino e saudavelmente indignado. Assim mesmo e a mil, fez ginástica para abrir espaço na corrida agenda das comemorações dos 75 anos – "a festa aconteceu o ano todo!", diverte-se – para receber o Estado, em seu estúdio na Lagoa, no Rio. Uma conversa sobre o que ele mais gosta de falar – tudo.
Com 75 anos ainda dá para ter macaquinhos no sótão?
Dá. Eu tenho pensado muito sobre a velhice. Reparo uma coisa: esse negócio de achar que a velhice é o fim, a entrega, a decadência é algo que me assustou muito no livro da Simone de Beauvoir (A Velhice). Como ela envelheceu mal, ao lado do Sartre, que também envelheceu mal, ela escreveu um livro que só levantou a história de artistas que envelheceram mal. Acho estranho, porque todo mundo tem a consciência de que vai ficar velho, e quando a velhice chega deveria ser natural. As gerações de hoje estão demorando muito para entregar o ouro. Neste momento, a quantidade de pessoas na minha faixa etária que ainda está atuando no Brasil é imensa. Inauguramos o setentão, que até pouco tempo não existia.
A gente percebe mesmo que os setentões estão saracoteando por aí. O que será que mudou nessa sua geração?
É uma pergunta interessante porque a geração do Sartre chegou muito amarga à velhice. Se você escolhe uma vida só baseada nos prazeres da carne, é claro que a pele vai ficar feia, que você ficar doente, cansado. O que está acontecendo agora é a consciência mais ampla de que não há alternativa: o melhor é continuar produzindo. Veja a Dercy Gonçalves, o Niemeyer, eles não se queixam da velhice. A Simone de Beauvoir disse que nenhuma obra dos grandes mestres foi feita na velhice. No entanto, o Niemeyer continua criando.
Mas você é preocupado com a saúde, se cuida?
Mais ou menos. Precisava nadar, andar, fazer regime. Não faço nada disso, só tomo as minhas pílulas para pressão alta. Por azar, eu tenho pressão alta. Atrapalha muito a vida de quem quer continuar fazendo muita coisa, mas tem como controlar, com as pílulas. Mudar o modo de viver, nem pensar. Comer sem sal? Eu, não.
Você sempre teve personagens homens, meninos, e agora vem com uma menina, a Menina das Estrelas. Como é hoje sua observação do universo feminino?
Meus personagens são mesmo meninos. Sempre tive muito cuidado ao escrever sobre meninas porque o meu trabalho é sobre a natureza humana, não sou um contador de história, estou sempre colocando questões sobre o sentimento humano. Achava meio difícil, porque eu poderia ser sincero mas não competente ao escrever sobre a menina, a mulher. Desta vez, tive coragem. Quando comecei a escrever o livro não tinha idéia do que dizer. Tanto é que não fiz uma história, mas uma descrição dessa instituição maravilhosa que é a menina. Há duas instituições no mundo: a menina e o menino. Larva, casulo e borboleta – você tem exatamente isso no ser humano. Até os 7 anos, o ser humano é larva. Dos 8 aos 11, é casulo. Depois, vira borboleta, vai assumir a própria vida. Agora, nesta fase de casulo, é que a menina e o menino passam a existir, quando se julgam no mundo. Sou fascinado por essa faixa de idade. Isso está bem explicado no livro, quando eu ilumino a menina dos 8 aos 11 como a Menina das Estrelas.
Sempre pensei no porquê de você não usar nos livros infantis nada da veia política que conhecemos dos seus trabalhos para adultos.
Acho que isso não é conversa para menino. Eu faço histórias otimistas para crianças. Não sou otimista, sei que a humanidade é complicada e que o ser humano nasce com ânsia de bondade, mas que a luta pela vida vai fazê-lo usar as piores qualidades dele para sobreviver. A vida vai mostrar esse tipo de coisas para criança, quando ela crescer. Mas enquanto for criança, eu tenho de falar de coisas amenas para ela. Eu não falo no Menina das Estrelas que o pai dela pode falhar, que a mãe dela é maluca, chata. Posso brincar com isso, mas valorizo a relação com o pai e com a mãe. Não vou fazer livro sobre aids para criança! Ela tem de acreditar na vida. Você não tem de fazer orientação política para criança, bobagem. Faço livros para a criança gostar de ler.
O Menino Maluquinho é de 1980, e coincide com abertura política. Não é coincidência que você tenha passado da indignação do Pasquim para o lirismo da literatura infantil justamente neste período, não?
Tem tudo a ver. Porque eu fiquei sem saber o que ia fazer. No Pasquim, eu tinha uma causa, vivia em função da luta contra a ditadura. Já tinha feito história em quadrinhos antes, sabia conversar com criança. Tinha feito Flicts, mas por causa do AI-5 me dei conta de que havia uma luta, e que eu não poderia ficar fazendo livro infantil. Quando os anos de chumbo acabaram, pensei "o que eu vou fazer?". Comecei a trabalhar como artista gráfico. Daí, me ocorreu fazer O Menino Maluquinho. O livro arrebentou a boca do balão, vendi 100 mil exemplares na Bienal do Livro de 1980. E editora me encomendou outro livro, e outro e mais outro. Virei autor para criança.
Então, é impossível a sobrevivência de uma publicação como O Pasquim na democracia?
Não tem como. Veja que todas as experiências fracassaram. Eu fiz a Bundas (1999), que era uma revista política. O leitor não teve nem curiosidade de verificar o que era. Quando a Carla Perez fez seguro da bunda dela, o banco anunciou em todos os lugares, menos na Bundas. Não conseguimos nenhum anúncio no mercado paulista. Ninguém anuncia num jornal de humor político. É engraçado, se fechou o espaço para publicação de humor no mundo. Eu gostaria de voltar a ter uma revista de humor, mas a única maneira de fazê-la sobreviver seria fazer sobre costumes. Porque fazendo cartum ridicularizando o Congresso e a decadência da política brasileira, não é possível sobreviver.
O Brasil sempre riu de si mesmo. Perdeu a auto-ironia?
Perdeu isso nas publicações. Mas a internet é cheia de sacanagens, o humor continua. Um humor de muito mau gosto, de burro, porque a internet é aberta, a qualidade do que se faz ali é péssima. E o humor que se faz na televisão é para agradar ao público menos exigente. O Zorra Total é de chorar. Agora, o humor de tomada de consciência, realmente, está morto no mundo inteiro. Tudo mudou, e eu não tenho nostalgia. Mas as razões para você ser feliz não são as mesmas de 30 atrás. Você pode ser feliz, sempre. As circunstâncias mudaram, só isso.
Mas você continua romântico?
Claro, a gente não vai mudar por causa dos novos tempos, mas precisa compreender os novos tempos para não ficar desajustado. É preciso ter consciência da transitoriedade das coisas, isso ajuda a envelhecer.
Você é mais Jeremias, O Bom ou mais Menino Maluquinho?
Acho que os dois. Não tem como você fugir de botar a sua cabeça nos personagens que cria, seja o Mineirinho, o Comequieto ou a Supermãe. Eu sou a Supermãe e tenho também o meu lado Jeremias, mas com a consciência de que a bondade não é uma qualidade, é uma maneira de sobreviver no mundo. Às vezes, é mais fácil ser bom, você se livra dos problemas.
E o seu disco de bolero, quando sai?
Olha, eu fiz a versão de Vingança, do Lupicínio Rodrigues para o espanhol, como bolero. Vou cantar no disco da Maria Eduarda, que canta como um anjo. O Chico Caruso canta uma música e eu outra. Em novembro, ela vai lançar o disco, e eu e o Chico vamos participar do show – somos dois caras-de-pau. Eu ainda gravo um disco de bolero. Nasci mesmo para ser crooner de orquestra!
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